"Trabalho há mais de 30 anos com escola que não tem aula, série e prova, e dá certo", diz educador português
Simone Harnik
Idealizador da Escola da Ponte, em
Portugal, instituição que, em 1976, iniciou um projeto no qual os estudantes
aprendem sem salas de aula, divisão de turmas ou disciplinas, o educador
português José Pacheco afirma que as escolas tradicionais são um desperdício
para os estudantes e os professores.
"O que fiz por mais de 30 anos
foi uma escola onde não há aula, onde não há série, horário, diretor. E é a
melhor escola nas provas nacionais e nos vestibulares", diz. "Dar
aula não serve para nada. É necessário um outro tipo de trabalho, que requer
muito estudo, muito tempo e muita reflexão."
Aos 58 anos, o
professor que classifica autores como Jean Piaget como "fósseis", fez
uma peregrinação pelo país. No trabalho de prospecção de boas iniciativas em
colégios brasileiros, Pacheco só não conheceu instituições do Acre e do Amapá e
diz ter somado cerca de 300 voos no último ano.
Com a experiência
das viagens, escreveu dois livros de crônicas: o "Pequeno
Dicionário de Absurdos em Educação", da editora Artmed, e o"Pequeno
Dicionário das Utopias da Educação", da editora Wak. Aponta ainda que a educação brasileira não
precisa de mais recursos para melhorar: "O Brasil tem tudo o que precisa,
tem todos os recursos e os desperdiça". Veja a entrevista:
![]() |
O educador português José Pacheco |
UOL Educação - Em suas andanças pelo país, qual o absurdo que
mais chamou sua atenção?
Pacheco - O maior absurdo é que a educação do Brasil não
precisa de recursos para melhorar. O Brasil tem tudo o que precisa, tem todos
os recursos e os desperdiça.
UOL Educação - Desperdiça como?
Pacheco - Pelo tipo de organização. A começar pelo próprio
Ministério da Educação. Eu brinco, por vezes, dizendo que o melhor que se
poderia fazer pela educação no Brasil era extinguir o Ministério da Educação.
Era a primeira grande política educativa.
UOL Educação - Qual o problema do ministério?
Pacheco - Toda a burocracia do Ministério da Educação que se
estende até a base, porque a burocracia também existe nas escolas, à imagem e
semelhança do ministério. No próprio ministério, o contraste entre a utopia e o
absurdo também existe. Conheço gente da máxima competência, gente honesta. O
problema é que, com gente tão boa, as coisas não funcionam porque o modo
burocrático vertical não funciona. É um desperdício tremendo.
UOL Educação - Como resolver?
Pacheco - Teria de haver uma diferente concepção de gestão
pública, uma diferente concepção de educação e uma revisão de tudo o que é o
trabalho.
UOL Educação - O que teria de mudar na concepção de educação?
Pacheco - O essencial seria que o Brasil compreendesse que
não precisa ir ao estrangeiro procurar as suas soluções. Esse é outro absurdo.
Quais são hoje os autores que influenciam as escolas? Vygotsky [Lev S. Vygotsky
(1896-1934)], Piaget [Jean Piaget (1896-1980)]? Não vejo um brasileiro. Mas
podem dizer: "E Paulo Freire?". Não vejo Paulo Freire em nenhuma sala
de aula. Fala-se, mas não se faz.
Identifiquei, nos
últimos anos, autores brasileiros da maior importância que o Brasil desconhece.
Esse é outro absurdo. Quem é que ouviu falar de Eurípedes Barsanulfo (1880-1918)?
De Tomás Novelino (1901-2000)? De Agostinho da Silva (1906-1994)? Ninguém fala
deles. Como um país como este, que tem os maiores educadores que eu já conheci,
não quer saber deles nem os conhece?
Há 102 anos, em
1907, o Brasil teve aquilo que eu considero o projeto educacional mais avançado
do século 20. Se eu perguntar a cem educadores brasileiros, 99 não conhecem.
Era em Sacramento, Minas Gerais, mas agora já não existe. O autor foi Eurípedes
Barsanulfo, que morreu em 1918 com a gripe espanhola. Este foi, para mim, o
projeto mais arrojado do século 20, no mundo.
UOL Educação - O que tinha de tão arrojado?
Pacheco - Primeiro, na época, era proibida a educação de
moços e moças juntos. Só durante o governo Getúlio Vargas é que se pôde juntar
os dois gêneros nos colégios. Ele [Barsanulfo] fez isso. Ele tinha pesquisa na
natureza, tinha astronomia no currículo oficial. Não tinha série nem turma nem
aula nem prova. E os alunos desse liceu foram a elite de seu tempo. Tomás
Novelino foi um deles e Roberto Crema, que hoje está aí com a educação
holística global, foi aluno de Novelino.
UOL Educação - Por que o senhor fala desses autores?
Pacheco - Digo isso para que o brasileiro tenha amor
próprio, compreenda aquilo que tem para que não importe do estrangeiro aquilo
que não precisa. É um absurdo ter tudo aqui dentro e ir pegar lá fora.
UOL Educação - Qual foi a maior utopia que o senhor viu?
Pacheco - O Brasil é um país de utopias, como a de Antônio Conselheiro e a de Zumbi dos Palmares. Fui para a história, para não falar em educação. Na
educação, temos Agostinho da Silva, que é um utópico coerente, cuja utopia é
perfeitamente viável no Brasil. Ou seja, é possível ter uma educação que seja
de todos e para todos. O Brasil, dentro de uns 30 ou 40 anos, será um país bem
importante pela educação. São os absurdos que têm de desaparecer, para dar
lugar à concretização das utopias. Acredito nisso, por isso estou aqui.
UOL Educação - Os professores são resistentes às mudanças?
Pacheco - Os professores são um problema e são a solução. Eu
prefiro pensar naqueles professores que são a solução, conheço muitos que estão
afirmando práticas diferentes.
UOL Educação - Práticas diferentes como a da Escola da Ponte?
Pacheco - Não são "como", mas inspiradas, com
certeza. São práticas que fazem com que a escola seja para todos e proporcione
sucesso para todos.
UOL Educação - Dentro da escola tradicional, onde ocorre o
desperdício de recursos?
Pacheco - Se considerarmos o dinheiro que o Estado gasta por
aluno, daria para ter uma escola de elite. Onde o dinheiro se desperdiça? Por
que em uma escola qualquer, que tem turmas de 40 alunos, a relação entre o
número de professores e de alunos é de um para nove? Por que os laudos e os
atestados médicos são tantos? Porque a situação que se criou nas escolas é a do
descaso. Esse é um absurdo.
UOL Educação - Onde mais ocorre o desperdício nas escolas?
Pacheco - O desperdício de tempo também é enorme em uma
aula. Pelo tipo de trabalho que se faz, quando se dá aula, uma parte dos alunos
não tem condições de perceber o que está acontecendo, porque não têm os
chamados pré-requisitos, e se desliga. Há um outro conjunto de crianças que
sabem mais do que o professor está explicando - e também se desliga. Há os que
acompanham, mas nem todos entendem o que o professor fala. Em uma aula de 50
minutos, o professor desperdiça cerca de 20 horas. Se multiplicarmos o número
de alunos que não aproveitam a aula pelo tempo, vai dar isso.
O desperdício maior
tem a ver com o funcionamento das escolas. Os professores são pessoas sábias,
honestas, inteligentes e que podem fazer de outro modo: não dando aula, porque
dar aula não serve para nada. É necessário um outro tipo de trabalho, que
requer muito estudo, muito tempo e muita reflexão.
UOL Educação - As famílias não estão acostumadas com escolas que
não têm classe, professor ou disciplinas. Querem o conteúdo para o vestibular.
Como se rompe com esse tipo de mentalidade?
Pacheco - Pode-se romper mostrando que é possível. Eu falo
do que faço, e não de teorias. O que fiz por mais de 30 anos foi uma escola
onde não há aula, onde não há série, horário, diretor. E é a melhor escola nas
provas nacionais e nos vestibulares. Justamente por não ter aulas e nada disso.
UOL Educação - Por que uma escola que não tem provas forma alunos
capazes de ter boas notas em provas e concursos?
Pacheco - Exatamente por ser uma escola, enquanto as que dão
aulas não são. As pessoas têm de perceber que não é impossível. E mais, que é
mais fácil. Posso afirmar, porque já fiz as duas coisas: estive em escolas
tradicionais, com aulas, provas, com tudo igualzinho a qualquer escola; e
estive também 32 anos em outra escola que não tem nada disso. É mais fácil, os
resultados são melhores.
UOL Educação - Na concepção do senhor, o que é uma boa escola?
Pacheco - É a aquela que dá a todos condições de acesso, e a
cada um, condições de sucesso. Sucesso não é só chegar ao conhecimento, é a
felicidade. É uma escola onde não haja nenhuma criança que não aprenda. E isso
é possível, porque eu sei que é. Na prática.
UOL Educação - O professor que está em uma escola tradicional tem
espaço para fazer um trabalho diferente? O senhor vê espaço para isso?
Pacheco - Não só vejo, como participo disso. No Brasil,
participei de vários projetos onde os professores conseguiram escapar à lógica
da reprodução do sistema que lhe é imposto. Só que isso requer várias
condições: primeiro, não pode ser feito em termos individuais; segundo, a
pessoa tem de respeitar que os outros também têm razão. Se, dentro da escola,
os processos começam a mudar e os resultados aparecem, os outros professores se
aproximam. Não tem de haver divisionismo.
UOL Educação - O senhor acha que a mudança na estrutura da escola
poderia partir do poder público ou depende da base?
Pacheco - Acredito que possa partir do poder público, mas
duvido que aconteça. As secretarias têm projetos importantes, mas são de quatro
anos. Uma mudança em educação precisa de dezenas de anos. Precisa de
continuidade. E isso é difícil de assegurar em uma gestão. Precisa partir de
cada unidade escolar e do poder público juntos.
FONTE: http://educacao.uol.com.br/ultnot/2009/06/30/ult105u8320.jhtm
Comentários
Postar um comentário